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A FRAGILIDADE ARGUMENTATIVA DO DÉFICIT COMO JUSTIFICATIVA PARA PROPOSTA DE REFORMA DA PREVIDÊNCIA.

Atualizado: 29 de jun. de 2019

1. Introdução;

O atual modelo previdenciário, sabidamente, é fruto de uma evolução iniciada em um período de pouco ou quase nenhum direito social supremamente garantido, ou, pode-se até mesmo afirmar, de tímido abrigo.


Historicamente, os primeiros movimentos com vistas a proteção previdenciária surgiram em setores esparsos, através de caixas previdenciárias privadas, primeiramente individualizadas e depois compartilhadas por segmentos específicos.


Com o decorrer do tempo, os vários textos constitucionais começaram a abordar a proteção previdenciária de forma englobante, porém, com passos tímidos, indicando prestações apenas para específicas categorias, como a dos funcionários públicos, sem uma amplitude que pudesse atender outros atores sociais.


Leis e decretos tentaram normatizar e regulamentar a proteção previdenciária, contudo, somente a partir do sistema de Seguridade Social, do qual faz parte a Previdência Social, emergido com a Constituição de 1988, é que a garantia de prestações e serviços sociais restou viabilizada como forma de efetivação dos direitos sociais e fundamentais, por excelência, com o desejo de ampliar e universlizar a cobertura, vale dizer, estender a todos um pacto celebrado de justiça social.


Após a edição do texto constitucional de 1988, o sistema previdenciário brasileiro, dividido basicamente em dois grandes regimes, passou por diversas minirreformas no sentido de se obter uma paridade, acessibilidade e integração, baseado na filiação obrigatória e no caráter contributivo, razão de que diversas foram as tentativas de reformar este modelo, contudo, sem ter ocorrido de maneira completa, dimensional e total, como sempre se esperou, tendo ocorrido, aliás, tentativas de se alterar o pacto previdenciário via medidas provisórias, sem que sequer seus requisitos mínimos fossem verificados na origem ou, em outros casos, com decretos e normas outras cuja origem acabou por deflagrarem diversas discussões judiciais.


Assim, ao longo de décadas, em que pese o texto constitucional conferir fundante destaque ao sistema previdenciário como um todo, aludido tratamento não se viu entre os gestores políticos, que contingenciaram a reforma no tempo e de maneira facetária, sem um acurado debate democrático de qualidade, que pudesse, no mínimo, dar concretude às diretrizes maiores inspiradas no bem-estar e na dignidade da pessoa humana, o paradigma da modernidade, pós-modernidade ou para alguns, o pós-social.


De se esperar, que outra tentativa se apresenta a comunidade, via emenda constitucional, sobre a qual, carrega volumosas propostas de alteração substancial do sistema previdenciário como um todo, em todos os regimes e até mesmo com vistas a modificar bases do processo judicial previdenciário, dentre outras controvertidas novidades.


Aqui o contexto das breves reflexões a respeito, notadamente quanto ao central argumento governamental para sua existência, vale dizer, da alegada e não comprovada existência de um déficit nas contas e a prejudicialidade econômica para seu sustento.

Logo, intentou-se aqui, criticamente, ponderar essa premissa com as diretrizes basilares de efetividade dos direitos fundamentais, aos quais justificam e legitimam a proteção previdenciária ora colocada em risco.


2. Modelo da proteção previdenciária;


Essencialmente, a Previdência Social é compreendida como uma autêntica técnica protetiva inserida no âmago da Seguridade Social, cujo embrião foi fecundado e decantado pela Constituição de 1988 em seu artigo 194, uma arquitetura que representa o conjunto integrado de ações e serviços alocados em três subsistemas ou três grandes áreas: Saúde; Assistência Social e Previdência Social.


Estes subsistemas, independentes e sem hierarquia, integram um planejamento constitucional para a promoção do bem-estar social, possuindo características próprias e atribuições específicas de maneira a contemplar amplo abrigo aos assistidos, aos necessitados e aos segurados.


Na Saúde se observa uma importante técnica de proteção direcionada para todos, indistintamente e sem qualquer contrapartida, o que também ocorre ao subsistema da Assistência Social que não requer contribuição alguma para seu alcance, apenas o cumprimento de alguns requisitos, diferentemente do que ocorre com a Previdência. 

Wagner Balera aborda a extensão desta engenharia constitucional:


Queremos dizer, quando afirmamos que o objetivo do Sistema Nacional de Seguridade Social se confunde com o objetivo da Ordem Social (e, diga-se, igualmente, com o objetivo da Ordem Econômica, na voz do caput do art.170), que esse valor – a justiça social – uma vez concretizado, representa o modelo ideal de comunidade para a qual tende toda a concretização constitucional do sistema.[1]


Fábio Zambitte Ibrahim também traz o seguinte conceito:


Na verdade, a seguridade social pode ser conceituada como a rede protetiva formada pelo Estado e sociedade, com contribuições de todos, incluindo parte dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações positivas no sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida.[2]

Já a Previdência Social é considerada uma “apólice constitucional”, um seguro amplo contra riscos sociais, cujos eventos são taxativos e disciplinados em lei, e, cuja cobertura dependente de comprovação de certos requisitos, dentre eles, por exemplo, a qualidade de segurado, ou seja, da contribuição do segurado (prêmio) como contrapartida ao sistema, além de outros requisitos específicos exigidos para a concessão de cada uma das prestações existentes.

Necessário aqui este prévio esclarecimento, tendo em vista que ao visualizar as argumentações usadas para justificar a necessidade da reforma previdenciária, não se pode olvidar de que no sistema da Previdência Social tem-se uma autêntica contratação, via filiação contributiva, de uma verdadeira e genuína “apólice de seguro social”.


Neste ponto, de relevo registrar que o seguro social não se confunde com o sistema de capitalização, recentemente ventilados como uma alternativa reformadora do atual modelo previdenciário, apoiado na solidariedade e na repartição simples.


Em linhas gerais, a capitalização representa uma segurança complementar, presente no sistema previdenciário brasileiro através da Previdência Privada, comercializada por instituições financeiras no modelo aberto ou por associações e entidades de classe no modelo fechado, disponível apenas para os integrantes dessas associações ou entidades.


Pois bem, ocorre que este tipo de previdência se caracteriza por sua natureza suplementar e facultativa, enquanto o seguro social estabelece uma garantia constitucional aos beneficiários contra os riscos sociais, ou seja, essencialmente englobam os mesmos objetivos protetivos, contudo, por caminhos de financiamentos distintos, vale dizer, criou-se a previdência pública e privada, enquanto espécies do gênero previdenciário.


Wladimir Novaes Martinez que explica a Previdência da seguinte maneira:

É a técnica de proteção social que visa propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana – quando esta não pode obtê-los ou não é socialmente desejável que os aufira pessoalmente através do trabalho, por motivo de maternidade, nascimento, incapacidade, invalidez, desemprego, prisão, idade avançada, tempo de serviço ou morte – mediante contribuição compulsória distinta, proveniente da sociedade e de cada um dos participantes.[3]

Esse seguro social é estabelecido a partir de regras alicerçadas em cálculos estatísticos e atuariais que determinam as coberturas dos eventos danosos pré-definidos e a serem financiadas por ampla base contributiva, ao contrário da Previdência sob o modelo da capitalização, politicamente sugerida na PEC n.6/2019 e que induz proteção individualizada, retirando claramente o viés da Seguridade Social e do compartilhamento dos riscos por toda a sociedade, a essência do fundante princípio da solidariedade.


Como exemplo, suponha-se que um jovem de dezoito anos ingresse em seu primeiro emprego, ostentando assim a qualidade de segurado junto a Previdência Social. Numa terrível, mas possível eventualidade (risco) desse trabalhador sofrer um acidente que o torne incapaz para o trabalho sua proteção estaria garantida, passando assim a se valer de alguns dos benefícios por incapacidade laborativa previstos no pacto de proteção do artigo 18 da Lei 8.213/91. É justamente essa proteção constitucional que determina a sucumbência quanto aos riscos sociais por todos que formam a base contributiva do sistema.


Em outro cenário, pelo proposto sistema de capitalização, como ficaria a situação desse mesmo jovem? Afinal, na ocorrência de um evento prematuro não haveria tempo para a capitalização e respectiva implantação da proteção previdenciária, dentre outros controvertidos aspectos que envolvem a tentativa de se implantar no sistema público de previdência o modelo da capitalização, aliás, sequer exitoso na expressiva maioria dos países que fizeram essa escolha.

Esse tipo de ponderação vai ao encontro dos discursos de várias autoridades do ramo previdenciário que alertam para a necessidade de promoção de estudos mais aprofundados e análises técnicas criteriosas, no mínimo, antes de se estruturar uma reforma para o atual modelo previdenciário com a migração para o regime de capitalização e sem regras claras que devem existir, a fim de ser promovido um importante e amplo debate social a respeito, o que não ocorreu até o presente momento, inclusive.


Ainda, no modelo previdenciário brasileiro destaca-se a existência de regimes jurídicos que estabelecem a relação jurídica de direitos e deveres entre os segurados e o sistem previdenciário, existindo o regime geral, administrado pelo INSS, disciplinador da maioria das coberturas previdenciárias brasileiras; o regime próprio que é inerente aos servidores públicos efetivos; os regimes especiais que regulamentam prestações inerentes a militares, parlamentares e outras situações, além do regime privado de proteção previdenciária.

Finalmente, cumpre tecer observações sobre o modelo de financiamento, norteador dos questionamentos ora arguidos, a despeito da real existência do aclamado déficitprevidenciário.

Neste sentido, a Magna Carta conferiu no artigo 195 que a Previdência Social será financiada por toda a sociedade mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios, além de contribuições sociais provenientes das atividades exercidas por empregadores, empresas e entidades a elas equiparadas, pelas atividades exercidas dos trabalhadores e segurados obrigatórios e facultativos, bem como contribuições incidentes sobre concursos de prognósticos, importação de bens e serviços ou a eles equiparados, destacando também o princípio da solidariedade que amolda a presente ordem jurídica constitucional, conforme a sua dicção normativa:


Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais (...).[4]

O sistema contributivo adotado pela Constituição Federal está em linha com o conhecido e fundante princípio da solidariedade, presente em todo o ordenamento jurídico e que é definido por Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, nos seguintes termos:

A Previdência Social se baseia, fundamentalmente, na solidariedade entre os membros da sociedade. Assim, como a noção de bem-estar coletivo repousa na possibilidade de proteção de todos os membros da coletividade, somente a partir da ação coletiva de repartir os frutos do trabalho, com a cotização de cada um em prol do todo, permite a subsistência de um sistema previdenciário. (…) Ressalta Daniel Machado da Rocha que 'a solidariedade previdenciária legitima-se na ideia de que, além de direitos e liberdades, os indivíduos também têm deveres para com a comunidade na qual estão inseridos', como o dever de recolher tributos (e contribuições sociais, como espécies destes), ainda que não haja qualquer possibilidade de contrapartida em contraprestações (é o caso das contribuições exigidas dos tomadores de serviços). Envolve, pelo esforço individual, o movimento global de uma comunidade em favor de uma minoria – os necessitados de proteção – de forma anônima.[5]

Demonstra-se, com isso, a existência de uma grande base contributiva para o modelo previdenciário brasileiro, cujos recursos, diferentemente do que é propagado diariamente, não são originados apenas pela contribuição dos trabalhadores em atividade, aliás, existe um fundamento constitucional neste sentido que apregoa a diversidade na base do financiamento, como se vê do artigo 194, VI da Lei Maior.


A grande retórica do déficit previdenciário tem como premissa a diminuição da base de contribuintes frente ao crescente número de beneficiários, em decorrência do aumento da expectativa de vida dos brasileiros, algo natural e incontrolável.

Neste sentido, há que se ponderar que a Constituição Federal ao determinar esse amplo leque do sistema de financiamento, consolidou um ônus à toda sociedade como forma de sustentação financeira para garantia da proteção social, determinando e justificando essa importante diretriz da necessidade de um leque diversificado na estrutura de sustento do sistema, enquanto meios e modos de promoção, integração e inserção social.


Assim, o prescrito por Miguel Horvath:


Os princípios representam a consciência jurídica da sociedade. Têm a elevada missão de velar pelos valores eternos do homem. A seguridade social tem como objetivo básico manter a normalidade social, tendo como base o primado do trabalho, o bem-estar e a justiça social. [6]

Como reflexão, atente-se ao fato de que, além dos recursos originários dos orçamentos dos entes federativos, oriundos de tributos e outras receitas não vinculadas, as contribuições sociais que deveriam ser alocadas à Previdência Social são incidentes sobre toda a cadeia produtiva, com especial destaque para a contribuição sobre a folha de salários, receitas, faturamentos e lucros das empresas, resultando certamente em vultuosas cifras e que sequer são fidedignamente divulgadas como se espera.

Com isso, resta evidente que toda a cadeia produtiva, assim dizendo, todo o PIB brasileiro, ocupante da 9º posição no ranking mundial com 1.798,62 bilhões de dólares[7], financia diretamente nosso modelo previdenciário. Este contexto, aliás, uma incógnita suscitada por muitos juristas, técnicos, atuários e até mesmo pela renomada Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP.


3. Evolução constitucional e social;


Sendo objetivo central do presente artigo a análise da fragilidade argumentativa adotada para a reforma previdenciária ao unitário discurso do déficit, em contraponto à efetividade dos direitos fundamentais e os reflexos daí decorrentes, necessário se faz a contextualização da origem do sistema previdenciário brasileiro e a evolução social de inspiração constitucional, por breves marcos históricos.

A Constituição Republicana de 1891 foi a primeira a inovar quanto à prestação de natureza previdenciária ao estabelecer a aposentadoria por invalidez aos trabalhadores do serviço público.


Por sua vez, a Constituição de 1934 estabeleceu bases para o financiamento previdenciário, determinando o sistema tripartite em que trabalhadores, empresas e o Poder Público deveriam arcar com o custeio da previdência. Porém, embora contemplado no texto constitucional, o tema previdenciário de forma tímida tinha tratamento esparso, carecendo de um regramento constitucional robusto que constituísse um sistema de seguridade alicerçado em valores de ampla proteção social.


Com relação à sua evolução histórica, de início, a Previdência foi regulamentada especialmente por diversas leis e decretos, contudo, de forma setorizada, iniciando-se por proteções a apenas algumas categorias profissionais, através de sistemas de caixas de aposentadorias, frágeis e sujeitas a várias oscilações, restando por não conferir segurança, fator essencial a este instituto que visa exatamente proclamar proteção em momentos de desamparo.

Em contrapartida, a evolução social permeada pelo primado do trabalho carecia de um sistema amplo e robusto capaz de assegurar condições mínimas de sobrevivência digna para situações de infortúnio, tal qual registra Wagner Balera: “A seguridade é sistema mais amplo de cobertura de contingências sociais destinado a todos os que se encontrem em estado de necessidade”.[8]

Neste aspeto, somente a Constituição Federal de 1988 criou um amplo sistema protetivo de Seguridade Social englobando a Saúde, a Assistência Social e a Previdência Social, como forma de um planejamento de abrigo e promoção do bem-estar social.


Mais do que isso, o texto de 1988 determinou garantias quanto aos direitos sociais, considerados direitos fundamentais e, por isso, defendidos por muitos constitucionalistas como de caráter permanente, com vedação de seu retrocesso e também figurando no texto constitucional na qualidade de verdadeiras cláusulas pétreas, impondo proibição clara à qualquer emenda que tente abolir tais garantias, por seu caráter fundante, valorativo e enraizado na estrutura de um sistema constitucional e social por excelência.


Serau Jr., assevera que:


Inicialmente, reconhecemos que a Previdência Social e todos os institutos que lhe são pertinentes, são direitos fundamentais. Diante dessa premissa, todos os valores e compreensões derivados da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais aplicam-se às questões previdenciárias.[9]

Araújo e Nunes Júnior, também acentuam nesse cenário que:

Os direitos de caráter previdenciário são exemplos dessa categoria de direitos fundamentais. Também chamados de direitos de crença, pois trazem a esperança de uma participação ativa do Estado.[10]

Já sob a égide do Texto Constitucional de 1988 foram editadas as Leis 8.212/1991 e 8.213/1991, determinantes de um marco regulatório para o Regime Geral da Previdência Social disciplinando a concessão dos benefícios previdenciários deste regime e a regulação necessária e correspondente contributividade para o sistema previdenciário, em homenagem à regra da contrapartida.


Esse regramento guarda estreita relação com a temática aqui abordada, uma vez que os benefícios concedidos pelo sistema previdenciário, obrigatoriamente, possuem fonte de custeio específica, previamente regulada, ou seja, a argumentação de que há necessidade de reforma do sistema previdenciário alardeada pelo déficit do sistema, antes de tudo, deveria passar por análise criteriosa das possíveis inflexões e improváveis distorções entre cada fonte de custeio e o respectivo benefício, com demonstração passo a passo de eventuais “gargalos” existentes.

Além disso, a partir da promulgação da Constituição de 1988, diferentemente do que é divulgado, várias foram as Emendas Constitucionais ao Texto Maior que resultaram em minirreformas previdenciárias, porém, que não resultaram em um enfrentamento completo e a altura do desejado, infelizmente. Como exemplo, dentre outros, no que concerne à previdência dos servidores públicos efetivos, em que a Emenda Constitucional de número 20/1998 atribuiu caráter contributivo ao regime dos inativos, bem como outros dispositivos que traduziram grande inovação no sentido de aproximação ao regime geral.


Da mesma forma a EC 41/2003, instituindo regras e requisitos etários para o cálculo da renda inicial dos benefícios, além da EC 47/2005 que disciplinou proventos proporcionais ao tempo de contribuição do servidor. Ainda, recentemente a EC 88/2015 que alterou, inclusive, a aposentadoria compulsória dos servidores para setenta e cinco anos.


Isso demonstra que, no decorrer da evolução social, ocorreram modificações constitucionais no sentido de se caminhar para uma paridade no sistema previdenciário entre os regimes próprio e geral, um recado existente no seio constitucional e a ser debatido com todos os atores sociais.

Importante esta análise sob a ótica da evolução constitucional, pois o texto de nossa Lei Maior, em seu art. 195, § 5º, cuidou de estabelecer recíproca relação entre a fonte de custeio e o respectivo benefício.


Assim, deflagrar uma reforma genérica sem prévio estudo técnico a fim de se determinar eventuais desvios e correspondentes proposições para suas correções, é de todo temerário e frágil.


Miguel Horvath registra a importância da existência deste comando normativo de equivalência entre benefício e custeio:


A regra da contrapartida funciona como garantia do sistema, evitando criação de novas contribuições sem o consequente aumento do nível de proteção social, bem como evita que por motivos paternalistas, eleitoreiros, sejam criados benefícios sem suporte técnico-financeiro capazes de gerar desequilíbrio na equação financeiro-atuarial do sistema. Concluindo, é necessário para asseguramento das futuras gerações que o sistema previdenciário seja conduzido por uma política social, ativa e operante, visando o alcance de sua finalidade.[11]

A própria Constituição Federal pela inteligência do art. 195, § 4º “A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social” [...], estabeleceu ferramentas de reforços ao custeio deste sistema de proteção, como forma de garantir a expansão da Seguridade Social.


Não se coaduna com a sistemática constitucional previdenciária a redução do seguro social, representado por dilação de idade mínima para concessão de benefícios, redução de valores de benefícios ou extinção de critérios de concessão, dentre outros artifícios sugeridos por integrantes da equipe econômica do governo que despreza o viés social da programação previdenciária e se valem de exclusivos critérios econômicos para a redução de benefícios.

Resta claro que promover reformas de um sistema complexo, como o da Previdência Social, sob argumento massivo e exclusivo do déficit previdenciário sem a precedência de profundos e criteriosos estudos técnicos com amplo diálogo envolvendo os diversos segmentos da sociedade civil, entidades de classe, trabalhadores, empregadores e estudiosos do Direito Previdenciário denota uma recorrente e visível fragilidade da argumentação.


4. Reflexões sobre a proposta da reforma do sistema previdenciário brasileiro;


            Tema sempre atual, importante, polêmico e complexo, repercutindo na sociedade brasileira o intento de reforma do modelo previdenciário nacional sob os mais variados argumentos, dentre eles e com furor midiático a frágil situação fiscal do país que encontra no equilíbrio previdenciário a solução para todos os males.

Inevitavelmente ela virá, surgirá através do debate parlamentar, ainda que superficial e distante do necessário envolvimento com os atores sociais, a revelia das vozes da sociedade e da comunidade jurídica especializada, sequer convocada para a formação de suas bases e a fim de contribuir qualitativamente com viés seguro e constitucionalmente adequado.


Não se pode esquecer que como toda política pública de promoção e integração social, evidente que o trato previdenciário merece ajustes, aperfeiçoamento, atualização e robustas mudanças, para bem amoldar as circunstâncias contingenciais dessa geração, como por exemplo, o envelhecimento da população, dentre outros fenômenos sociais, econômicos e culturais.

De outro lado, há quem defenda que sua arrecadação deficitária ano a ano abala sistemicamente as demais contas financeiras da gestão pública e compromete o exercício estatal, com riscos futuros das garantias de manutenção da proteção previdenciária, fazendo com que a reforma seja algo primordial e deve ocorrer, de imediato, custe o que custar, ganhando peso o central argumento do déficit da contas que ora se debate.


Certamente, que a previdência nacional merece e aguarda uma reforma, uma atualização de suas bases e o necessário aprimoramento das regras para o aperfeiçoamento da proteção, estando aqui o sentimento maior eleito e escolhido pelos detentores do poder.

É que não se vê a divulgação de metas reformadoras que impliquem no fomento de uma educação previdenciária, ou ainda, que narrem os direitos e deveres daqueles menos assistidos, convidando-os à proteção e a uma cobertura estatal há muito pensada, especialmente a partir do paradigma de 1988.


Infelizmente, o que se tem visto são tratativas de redução da proteção, com o desaparecimento de direitos, endurecimento de regras, inversão de valores e outras formas de relativizar esse autêntico e importante direito social, por excelência, tudo para obter equilíbrio financeiro e atuarial, como se fossem esses os únicos e centrais alvos da estrutura previdenciária tupiniquim.


Em vozes há muito cadenciadas na sociedade brasileira, busca-se a diminuição da proteção e o aumento sistêmico da arrecadação previdenciária, enfraquecendo assim o modelo de previdência pública e o seu alcance, na contramão do que assentou o texto constitucional com referência a “universalização da cobertura e do atendimento”.

Também, que vetores máximos do texto constitucional como a dignidade humana, o valor social e o primado do trabalho, dentre outros são habitualmente esquecidos e aviltados quando a reforma da previdência ganha notoriedade coletiva a partir de uma perspectiva unicamente econômica.


De outro lado, a preocupação financeira e atuarial sabidamente perfaz o núcleo estruturante da previdência brasileira, tal qual preconizado em seu artigo 201, dando direcionamento ao gestor e informando toda a sociedade que as bases econômicas conferem vida futura entre as gerações no que pertine a política previdenciária.

Acontece que usualmente essa premissa ganha papel de destaque e se coloca como o ponto central do debate, afastando a natureza social que perfaz qualquer modelo previdenciário dos mais variados países que escolheram o constitucionalismo do bem-estar como diretriz fundante.


Não se nega que a higidez financeira seja irrelevante ou ainda diminuída no interior desse debate, aliás, esse também é o dizer constitucional para a existência do sistema, porém, de outro lado existe o ideário político de integração social, protetivo e que deve tutelar aquele filiado acometido de certas necessidades, cuja filiação autoriza a intervenção estatal em seu favor.

Neste sentido, estruturas outras para combater a informalidade poderiam fazer parte de qualquer pacote de reforma da previdência, trazendo a proteção estatal e conferindo dignidade aos menos assistidos que ante a dificuldade de alocação do mercado de trabalho e as burocracias do sistema, preferem o sustento por outros meios, com grandes repercussões jurídicas dentro do contexto coletivo quando ativos em um sistema protetivo inativo.

A bem da verdade pouco se fala a respeito, bastando que as tratativas de inserção aos programas sociais de inclusão previdenciária fossem ampliados, estruturados e fortemente divulgados.


Outro aspecto estruturante e que elevaria e muito a cidadania previdenciária se refere a disseminação da política de educação previdenciária, com informes pedagógicos sobre a definição de suas bases, a forma e o conteúdo da proteção e ainda os modos de inserção a esse programa constitucionalmente pensado, cuja proteção pode ocorrer a partir de seus 16 anos. 

Em termos de confiabilidade, merece a reforma também trilhar para esse alvo, vale dizer, dar segurança aos seus partícipes.


É que as oscilações existentes, como por exemplo, defasagem salarial, a falta de equivalência econômica, as constantes mudanças da política cambiária, a discrepância dos critérios de reajustes, a complexidade do sistema de cálculos e outros fatores, não conferem credibilidade à previdência pública, fragilizando assim sua existência e extensão em solo pátrio, ainda que o pensamento constitucional firmado em 1988 apregoe o oposto, vale dizer, dar amplitude e universalização na cobertura e atendimento.


Há também, nesta seara, sob o mesmo argumento da higidez financeira, a sua ausência, ou, de outro modo, a falta de clareza das informações a respeito, como será oportunamente aqui explorado.

De outro lado, o controle e a gestão do popular benefício de prestação continuada, o BPC/LOAS que não é previdenciário e se vale da estrutura autárquica de modo atípico para existir, quando na verdade deveria ser gerido por outros setores da administração pública e deixar a previdência com suas típicas atividades constitucionalmente previstas.

Como aqui demonstrado, não basta endurecer as regras de acesso ou ainda excluir direitos para que as bases da previdência continuem hígidas com o tempo, não sendo o trajeto mais justo e esperado por todos.


De novo, em outro exemplo, importante destacar a possibilidade de ações de cobrança e ações regressivas diversas para recuperação de crédito previdenciário, realizando um papel educativo, preventivo, fiscalizador, como o que acontece diariamente nas situações em que a contribuição previdenciária descontada do empregado são apropriadas pelo empregador e essa esperada cobrança nunca ocorre, seja pelo caminho administrativo, ou pelo viés judicial, preferindo a autarquia transferir tal encargo ao beneficiário, sabidamente hipossuficiente, que deverá comprovar o salário-de-contribuição e assim revisar a renda mensal de seu benefício.

Deveria a proposta de reforma primar pela qualidade, pela disseminação das informações de acesso, da educação e da política previdenciária, a fim de conferir cidadania e impactar a sociedade de maneira substancial com uma cultura que ao mesmo tempo confira direitos e igualmente promova sensibilidade e solidariedade quanto aos deveres.


Sobre a necessidade de fomento da cultura previdenciária Gustavo Krause escreveu:

A cultura previdenciária vai além da cultura financeira. Passa pela proteção pessoal e das famílias. É um movimento cultural que leva décadas, e que deveria começar ainda na escola. Na Europa, por exemplo, a previdência é compulsória. Finalmente, olhar em direção ao futuro significa compreender que as nações progridem porque trabalham muito, estudam muito, poupam e investem muito; significa reconhecer, na expressão de Eduardo Giannetti, o valor do amanhã que é superar o dilema de "por mais vida nos nossos anos ou mais anos nas nossas vidas”.[12]

E aqui se estaria realizando a verdadeira e genuína reforma, de qualidade, inclusiva, integrativa, justa, equilibrada e universalizada.


5. A controvertida premissa do déficit das contas previdenciárias;


Como defendido, o sistema previdenciário merece e requer ajustes, alterações, reformulações, aperfeiçoamento e evolução, sem desnaturar a essência maior que o reveste e justifica a necessidade de um debate exaustivo, ainda que prolongado, mas necessário para a construção e viabilização de um sentimento maior que está bem acima de quaisquer ingerências políticas, dogmáticas e efusivamente econômicas.


Neste aspecto, a razão da indagação que ora se apresenta sobre a real destinação do desejo reformador, se ao interesse econômico somente, ou, ao encontro dos anseios legítimos dos trabalhadores, detentores estes e destinatários de todo poder estatal, registrando que o sistema previdenciário também é uma expressão destacada do postulado da dignidade da pessoa humana e que não pode ser somente premissa abstrata e distante de viabiliação prática.

Sobre esse contexto, acentua José Afonso da Silva que:


Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma ideia qualquer apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando- a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.[13]


Paulo Bonavides acentua o aspecto diretivo e nuclear que limita e conduz o ordenamento jurídico inserido no constitucionalismo e apoiado no bem-estar, sem os quais o sistema da Seguridade Social não se justifica:

Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando hoje, a par dos progressos hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa, estamos a falar, em sede de positividade, acerca da unidade da Constituição, o princípio que urge referir na ordem espiritual e material dos valores é o princípio da dignidade da pessoa humana.[14]


Assim, de forma corriqueira, o que se vê inserido no rápido debate a respeito é tão somente o desiderato econômico, financeiro e atuarial, como se fossem as únicas e principais premissas de vida e manutenção do sistema, contrariando outros aspectos, dentre eles a essência da proteção, que deveria ditar as regras secundárias para o seu sustento, como uma relação de causa e efeito, ou, principal e acessório, mas com a existência do principal, vale dizer, a técnica de proteção previdenciária.


Evidente assim que os interesses dos trabalhadores e dos mais necessitados estão bem distantes da legitimidade de proposição e de finalidade deste intento reformador, sendo altamente impactados pela aprovação futura do modelo apresentado, cujo acesso as prestações básicas e mínimas será visivelmente dificultado, neutralizando o intento maior protetivo, acolhedor e que retrate um bem-estar com inclusão e integração. Afinal, esses os dizeres constitucionais, autênticos princípios diretivos.


Lenio Streck, a esse respeito registra que:


Um princípio não é um princípio em face de seu enunciado ou em decorrência de uma relação de uma relação lógico-explicativa, mas sim, em face daquilo que ele enuncia.[15]

Assim, o esperado debate reformador há de pontuar neste âmbito, aprimorar e ajustar pontos a serem ajustados e aprimorados, sem o distanciamento de conferir dignidade aos excluídos e aos mais necessitados.


Espera-se esse debate, coletivo, transparente, técnico e democraticamente construído, sob a inspiração constitucional, núcleo maior que justifica e dá vida a modelos previdenciários criados no constitucionalismo do bem-estar, ainda que moderno ou de modernidade tardia como o brasileiro.


Também, que mesmo o incisivo, efusivo e midiático discurso econômico, por si só sequer representa fundamento exclusivo e convincente que jutifique seguramente o desejo reformador, não podendo ocorrer por esta única e exclusive premissa, sem a perspectiva dos valores constitucionais e seu poder diretivo.


De outro enfoque, mesmo a perspectiva econômica, nuclear e fundamental para alguns, sequer merece pronta aceitação, como se máxima e incontroversa verdade fosse, não tendo uma voz técnica unissona do que apregoa.


Por exemplo, a ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil habitualmente demonstra que existe um superávit previdenciário ao contrário de outras vozes, comprovando que a mudança por este argumento não se justifica:


Por que desvincular 20% ou 30% dos recursos da seguridade social? Porque historicamente o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário. Para se ter uma ideia, entre 2005 e 2016,o superávit médio anual foi de R$ 50,1 bilhões. Coincidência, ou não, nesse mesmo período, entre 2005 e 2016, o valor médio de recursos desviados da Seguridade Social pela DRU foi de R$ 52,4 bilhões,ou seja, da mesma ordem de grandeza da média dos superávits da Seguridade no mesmo período. Se esse superávit não fosse subtraído pela DRU, a exposição pública dessa sobra de recursos incentivaria os projetos de reajuste de aposentadorias, de aumento da aplicação de recursos na Saúde ou na Assistência Social, promovendo, assim, uma melhor distribuição de renda na sociedade. Os superávits, ainda, poderiam ter sido utilizados para constituir uma grande reserva com o objetivo de dar solidez à Seguridade Social, participando do financiamento em momentos de crise e de diminuição da arrecadação. Assim, além de contribuir para a criação do artificial discurso de déficit da Seguridade, a DRU promove a subtração de recursos disponíveis para a disputa alocativa no processo de elaboração do orçamento da seguridade e evita a constituição de um fundo de reserva que contribuiria para compensar perdas de arrecadação em momentos de crise. A utilização desse expediente para construir uma conta de déficit da Seguridade Social demonstra que o interesse real na desvinculação nunca foi resolver problemas de gestão financeira de recursos, mas potencializar os discursos em prol das reformas para a supressão de direitos financiados pela Seguridade Social.[16]


A economista Denise Gentil, em sua tese de Doutoramento em Economia defendida em 2006 pela UFRJ, apresentou uma análise financeira da Seguridade Social no período de 1990 a 2005 e concluiu que:


As informações conduzem a uma conclusão óbvia: o sistema de seguridade social apresenta receitas que têm bases amplas e diversificadas e é financeiramente sustentável, apresentando grande potencial para a expansão de gastos sociais.[17]

Neste mesmo contexto, outras diversas vozes existem e apregoam que do ponto de vista econômico, o sistema é hígido, sustentável, há receitas suficientes e suas oscilações econômicas são por outros motivos, premissas essas distantes do trato popular e do conhecimento da grande maioria da população.


Lado outro, sabido que habitualmente tem ocorrido diversas renúncias fiscais, anistias, refinanciamentos, isenções, enfim, a política governamental há anos abre mão de valiosas receitas que se alocadas tal qual previstas no texto constitucional, da maneira correta e programada, certamente contribuiria e muito para um aprimoramento das pilastras previdenciárias.


É o que comprovaram os economistas Eduardo Moreira, Eduardo Fagnani e Paulo Kliass:

A reforma proposta, ao tornar para uma parcela relevante da população quase inviável perspectiva de se aposentar, desestimula as relações formais de trabalho, fazendo com que menos impostos e contribuições sejam arrecadados pelo governo, alimentando assim o déficit das contas públicas e jogando o país num ciclo vicioso que tende somente a crescer com o tempo. Apenas em 2017 o valor total das renunciais fiscais do governo federal beirou os 300 bilhões de reais. Deste total, mais de 150 bilhões correspondem a renúncias de contribuições sociais, que deveriam financiar a seguridade social no país. Ao longo da última década, este valor somado ultrapassou o 1 trilhão de reais. É importante lembrar que a renúncia deveria ser exceção e não regra, e não faz sentido os trabalhadores para estimular sua atividade, mas que acaba contribuindo para a visão de que existe um déficit estrutural nas contas da previdência.[18]


Outro relevante e importante estudo técnico também testifica esses apontamentos:

Considerando, pois, o que reza a CF-88, não faz sentido falar em déficit, porque existem fontes de recursos constitucionalmente asseguradas no Orçamento da Seguridade Social para financiar a Previdência. O suposto “rombo” R$ 85,8 bilhões apurado pelo governo em 2015, poderia ter sido coberto com parte dos R$ 202 bilhões arrecadados pela Cofins, dos R$ 61 bilhões arrecadados pela CSLL e dos R$ 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda os R$ 63 bilhões capturados da Seguridade pela DRU e os R$ 157 bilhões de desonerações e renúncias de receitas pertencentes ao Orçamento da Seguridade Social. [19]

Explorando as razões, no tempo, sobre o mau uso do orçamento existente e específico ao sistema de Seguridade, constitucionalmente pensado, Diego Cherulli registrou que:

O sistema de seguridade social brasileiro foi perfeitamente desenhado e deveria ser um dos mais seguros do mundo, mas as tantas intervenções políticas em prol de interesses desnaturaram sua essência e destruíram sua segurança, levando ao caos atual. Se o sistema está em colapso e em déficit é por culpa exclusiva da maliciosa política na administração dos recursos. Portanto, tudo o que se arrecada pelas contribuições sociais previstas no art. 195 – e não somente da folha – deve ser gasto, solidariamente, nas políticas de previdência (RGPS), assistência e saúde, sendo o resultado superavitário, conforme estudos apontam, depositado e acumulado no fundo específico criado pelo art. 250 da CF. Se esta política estivesse sendo cumprida, o referido fundo teria verbas suficientes para amplo investimento em três pilares, auxiliando em momento de crise e de baixa arrecadação, conferindo segurança ao sistema e transferindo à sociedade a confiança necessária ao investimento e formalização do trabalho.[20]

Assim, os desvios perpetrados existem há muito, infelizmente, não sendo justificado a reforma por este prisma, tendo em vista que a proteção previdenciária restou pensada pelo legislador maior em um sistema de integração, inserção e distribuição, com a participação de todos os atores sociais, conferindo dignidade aos mais necessitados, excluídos e de baixo acesso, buscando concretizar aos trabalhadores e seus dependentes, a fruição de um pacto de benefícios para os quais também contribuíram.


6. A fragilidade argumentativa e a neutralidade da cobertura previdenciária;


Transpassado esse amplo debate acerca da alocação da proteção previdenciária em solo pátrio, além de reflexões no tocante ao desejo reformador e as problemáticas daí decorrentes,

necessário explorar o esvaziamento argumentativo que tenta escorar a viabilidade do debate.


            Visualizando os argumentos justificadores, aliás, único, efusivo e incisivo, tem-se que o motivo central envolve a necessidade de ajustar e equilibrar as contas previdenciárias, supostamente em campo deficitário, comprometedora do crescimento nacional, como se a reforma previdenciária fosse a bola de cristal de solução de todos os males, presentes e vindouros.


            Este assim o cerne de todo o debate envolvendo a necessidade da reforma, cujos dados econômicos sequer são exaustivamente debatidos ou até mesmo acessíveis a todos, gerando inúmeras controvérsias, especialmente, entre renomados economistas e outros institutos econômicos.

            Pelos menos, neste sentido, os dizeres que justificam a própria PEC n.6/2019, tal qual lá lançados e que não deixam dúvidas quanto aos motivos apresentados da sua existência:

Há várias razões para isso, mas certamente nosso nó fiscal é razão primeira para a limitação de nosso crescimento econômico sustentável. E esse nó fiscal tem uma raiz: a despesa previdenciária. Enquanto nos recusamos a enfrentar o desafio previdenciário, a dívida pública subirá implacavelmente e asfixiará a economia. A dívida bruta em relação ao PIB subiu de 63% em 2014 para 74% em 2017. Sem reforma, Vossa Excelência terminará o mandato com essa relação próxima a 100%.[21]


Inviável e injustificado assim o manejo de uma proposta de reforma tão somente e exclusivamente sob a perspectiva econômica, adjetivamente acessória e restritiva, como se o crescimento do país dependesse unicamente de acertos financeiros e ajustes econômicos do sistema previdenciário.


Pensar dessa forma é o mesmo que usar inadequadamente o trajeto interpretativo que escolhe parcos e frágeis argumentos desconectados com o sentimento maior que apregoa a igualdade, promoção e justiça social.


Ao contrário, se valendo dos modos interpretativos que aliançam o Direito, necessário que o trajeto seja envidado com compromisso constitucional, buscando os fatos geradores para aprimorar o sistema de proteção e não o contrário, sem fragilizar a essência, com a fragilidade de argumentos que comprometem e distanciam sua constitucional interpretação.

Aqui o ideal esperado dentro do processo de construção dos sentidos, pois assim agindo tanto o modelo interpretativo abstrato dos textos quanto ao aspecto voluntarista e discricionário de alguns são afastados pelo caminho hermenêutico que trata a realização concreta do Direito, enquanto ferramenta de compreensão social, conferindo as respostas adequadas com integridade e coerência a que o ambiente comunitário projetou e espera, produzindo equilíbrio e segurança aos relacionamentos jurídicos existentes, espelhando a igualdade e a justiça a que o pacto previdenciário traz em seu bojo.


Lado outro, essa realidade encontrou novo horizonte a partir da onda constitucional que revolucionou também as bases interpretativas para uma correta argumentação jurídica a contar da inserção dos direitos fundamentais no âmago da positivação constitucional e daí decorrendo variados aspectos a respeito, seja quanto a legitimidade, seja quanto a validade da norma, a fim de serem usadas para a busca interpretativa, mas com piso sólido e com os corretos argumentos na sintonia com os anseios comunitários.


      Rafael Simioni acentua assim que:


Com a incorporação dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos positivos, tornou-se necessária uma nova concepção do próprio direito. De um direito que antes era entendido como um conjunto de normas jurídicas que regravam as condutas sociais, a incorporação dos direitos fundamentais ampliou essa ideia de regulação social para abranger também aquelas limitações do poder perante aos cidadãos, típicos do Estado Liberal[22].

Tem-se assim um completo disparate do desejo reformador e seus fundamentos, destacadamente frágeis, que maculam por completo suas bases, passos e discussões, comprometendo e muito a programação de efetivação de direitos fundamentais a que se escolheu no horizonte de 1988.       


7. Efeitos na política de efetividade dos direitos fundamentais;


A Constituição de 1988, seguindo tendência do constitucionalismo moderno e do viés adotado pelas constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, primou pela efetivação dos direitos e garantias fundamentais, consubstanciados na dignidade da pessoa humana e no estado de bem-estar social, centralmente, sendo uma construção normativa de peso que procurou inserir sem seu bojo os destaques do bem-estar, justiça social e outros valores fundantes da república

Para tanto, o constituinte originário esculpiu no contexto do Texto Maior normas de caráter declaratório (direitos) e normas de caráter assecuratório (garantias).

Neste sentido, a vigente Carta Magna foi erigida com supedâneo nos valores do bem-estar social, do primado do trabalho e no meta-valor da dignidade humana, este, norteador dos demais princípios constitucionais e, principalmente, das políticas públicas que primordialmente devem promover a efetivação dos direitos fundamentais, traduzindo-os em garantias fundantes.

Neste compasso, cumpre ponderar que os direitos sociais são direitos fundamentais e a garantia destes pressupõe a efetivação daqueles, conforme as palavras de Alexandre de Moraes:

Direitos Sociais são direitos fundamentas do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.[23]


Ingo Sarlet também destaca do seguinte modo:


Nesta esfera, como já sinalado na parte geral dos direitos fundamentais, também as normas de direitos sociais, (sendo normas de direitos fundamentais) possuem uma eficácia dirigente ou irradiante, decorrente da perspectiva objetiva que impõe ao Estado o dever de permanente realização dos direitos sociais, além de permitir às normas de direitos sociais operarem como parâmetro, tanto para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, quanto para a criação e o desenvolvimento das instituições, organizações e procedimentos voltados à proteção e promoção dos direitos sociais.[24]

O artigo 6º da Constituição de 1988 é taxativo ao elencar a Previdência Social como Direito Social e, não por acaso, situado ainda no Título II da Lei Maior: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.


Essa abordagem é de suma importância quando da análise da fragilidade argumentativa para o desejo reformador, se valendo como pano de fundo apenas o improvável déficit previdenciário, pois, frisa-se que existe uma vedação pelo constituinte originário, explicitamente no artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal de 1988 de qualquer modificação do texto constitucional com tendência a abolir direitos e garantias individuais e, neste contexto, inclusos os Direitos Sociais.

Princípios regentes dos direitos fundamentais, a indivisibilidade e a interdependência inferem a efetivação dos direitos sociais como condição indispensável ao exercício dos demais direitos fundamentais.


Flávia Piovesan, assim registra que: 

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. O texto constitucional demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático “pós-ditadura”. Após 21 anos de regime autoritário, objetiva a Constituição resgatar o Estado de Direito, a separação de poderes, a Federação, a Democracia e os direitos fundamentais, à luz do princípio da dignidade humana. O valor da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da Constituição), impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional.[25]


Exemplificando, o direito à vida requer a eficácia do direito à saúde, a dignidade da pessoa humana exige que se assegure o direito à moradia, à educação, à escolha de um trabalho digno e à proteção social em caso de desemprego, incapacidades e demais contingências.

Nesse diapasão, a Previdência Social elencada taxativamente pelo texto constitucional como direito social, cumprindo papel “sine qua non” na política de efetividade dos direitos fundamentais.


Sendo assim, as conquistas sociais, vale dizer, a proteção social garantidora do bem-estar social, do trabalho e em última “ratio” da dignidade da pessoa humana restam impossibilitados de retrocesso.


Como exemplo de efetivação dos direitos fundamentais na ordem previdenciária temos a proteção do rurícola, que não bastasse seu meio de labor agressivo, degradante e em muitos casos até mesmo periculoso, também em grande parte são penalisados por contratações às margens das leis trabalhistas, com salários aviltantes e expostos nas mais diversas intempéries no exercício do trabalho.


Nesta toada, a aposentadoria rural, conquista árdua desta classe de trabalhadores e em fragrante risco de retrocesso pelas propostas de reforma da previdência até então apresentadas, representa a possibilidade de afronta ao princípio da vedação ao retrocesso em total contrariedade a efetivação dos direitos fundamentais desta categoria.

Também, as propostas de reforma se mostram maléficas quanto aos novos requisitos para concessão do benefício assistencial de prestação continuada (LOAS), também quanto aos novos requisitos etários para aposentadorias especiais de trabalhadores expostos em ambientes agressivos e periculosos, dentre outras modificações ventiladas pela proposta aqui debatida, em flagrante retrocesso às conquistas sociais, fruto de reivindicações pleiteadas ao longo de muitas décadas.


Diante dessa exposição, cumpre destacar que uma reforma previdenciária cunhada sob argumentos puramente econômicos e em razão de critérios políticos deflagrados em função de repercussões eleitorais, caracterizam a possibilidade de materialização de um grande prejuízo social e da supressão de garantias fundamentais, não sonhados e indesejados por todos.


8. Conclusões;


O modelo previdenciário brasileiro, sem qualquer dúvida, requer ajustes ou mesmo de uma reforma abrangente no sentido de eliminação de desigualdades, consolidando a isonomia previdenciária para os dois principais regimes, geral e próprio, incluindo também o regime especial dos militares, em obediência ao princípio constitucional da isonomia.

Entretanto, esse desejo reformador deve se pautar por parâmetros exclusivamente técnicos com vistas às experiências de outros modelos previdenciários internacionais e, sobretudo, considerando a efetivação dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal, sob a inspiração do bem-estar e da justiça social.


O Estado Social, fundamento de nossa Constituição, deve ser a prioridade de todos, governantes e governados e, dentro desta prioridade, necessários são os esforços no sentido de viabilizar uma segurança social representada pela Previdência, de forma justa, isonômica e eficaz.

Todavia, o argumento central utilizado de um suposto déficit previdenciário, puramente de ordem econômica, não tem, per si, o condão de determinar a supressão de direitos e garantias dos segurados, sem que antes haja um estudo aprofundado envolvendo os diversos setores da sociedade, juristas e estudiosos da previdência.


A reforma previdenciária não pode ser ato unilateral do governo ou fruto de “negociação” política com o legislativo e direitos e garantias sociais, portanto, fundamentais não podem ser transigidos pelos representantes do povo e sim efetivados sob o prisma da igualdade, da preservação do estado de bem-estar social e sobretudo da dignidade da pessoa humana, distantes dos frágeis argumentos dogmáticos que não possuem legitimidade alguma ao debate proposto em que os protegidos deveriam fixar todos os passos desta relevante trajetória.




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